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Foi-se o tempo em que o culto a Nossa Senhora Aparecida beirava a unanimidade nacional. A representação de Maria, mãe de Jesus, continua sendo uma das imagens mais populares do país que ainda detém a maior população católica do mundo. A inauguração de uma escultura colossal de Aparecida na cidade paulista de mesmo nome, a dias do feriado celebrado nesta quinta (12) em homenagem à santa, é uma mostra dessa fé superlativa. Com 50 metros de altura, metade de um campo de futebol, ela supera em 12 metros o Cristo Redentor.
Mas esse latifúndio religioso enfrentou desgastes nas últimas décadas ante o avanço de dois grupos: evangélicos e os “sem religião”, e aqui entram agnósticos, ateus e pessoas que se dizem espiritualizadas, mas não se reconhecem numa instituição formal, como as igrejas.
Mesmo a estátua de aço inoxidável em Aparecida sofreu um arranhão simbólico antes de sua estreia. Nas reportagens sobre ela, a imprensa se lembrava de uma ação movida pela Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) questionando o uso de recurso público para beneficiar uma crença num Estado oficialmente laico desde 1890, dois meses após o Brasil trocar Império por República. O catolicismo deixou aí de ser a religião oficial da nação.
Um movimento como o da Atea seria impensável décadas atrás, quando a Igreja Católica, mesmo sem o monopólio religioso garantido por lei, ainda reinava soberana entre os brasileiros. A Justiça por fim liberou a construção da escultura, mas aquela não seria a primeira nem a última vez que a imagem de Aparecida seria questionada em público —se não pela via judicial, por ataques verbais e até físicos contra ela.
Uma das agressões aconteceu no começo de outubro. Um pastor evangélico do interior paulista, contrariado com uma estátua colocada pela prefeitura local na entrada da cidade, definiu a santa como “Satanás fantasiado de azul”.
Evangélicos não veneram santos, por verem no gesto uma indevida idolatria. Para o grupo, Jesus Cristo é o único mediador direto da humanidade com Deus. O problema, portanto, não seria admirar Maria ou outros nomes canonizados pelo Vaticano, mas lhes atribuir santidade.
Investidas evangélicas contra Aparecida em geral não escalam para a violência, mas são reflexo de um agigantamento dessa religião na sociedade. Em 2014, por exemplo, um padre da Paraíba acusou fiéis do outro espectro cristão de urinar em cima de uma estátua da santa e atear fogo nela depois.
Também do estado nordestino, Luiz Lourenço, conhecido como Pastor Poroca, maldisse a santidade de Maria repetidas vezes nos últimos anos. Em 2020, ele associou a Covid-19 à imagem católica, como se a pandemia fosse um castigo divino pelo culto a ela. “Olha a corona aí”, disse, apontando para a ilustração de Aparecida num calendário. “A praga do Apocalipse.”
O capítulo mais ruidoso dessa relação, o “chute na santa”, aconteceu em 1995. Um bispo da Igreja Universal deu pontapés numa figura da padroeira brasileira, que chamou de “um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado”. Jornais de todo o país registraram o arroubo, quase sempre por um ângulo negativo, o que à época descambou para ataques a templos da igreja do bispo Edir Macedo.
As manifestações contra Aparecida ainda repercutem mal e, quando violentas, recebem críticas inclusive de evangélicos. Mas o papel dos santos no imaginário popular murchou um tanto nos tempos recentes, como mostra pesquisa Datafolha de 2017.
Na ocasião, jubileu de 300 anos de Aparecida, o instituto mediu que 38% dos brasileiros eram devotos de uma ou mais dessas imagens sacras para o catolicismo. Dez anos antes, eram 49%.
Efeitos colaterais da retração católica no Brasil. Ainda que permaneça como maioria, o bloco representa cerca de metade do povo, seguido de evangélicos (um terço) e quem não professa uma fé específica (um décimo). A perspectiva é que encolha mais um pouco nos próximos anos. Esses números são projeções de pesquisas recentes, já que os dados religiosos do Censo de 2022 ainda não foram divulgados.
Um cenário bem diferente de 1931, quando Getúlio Vargas, agnóstico havia um semestre no comando do país, instituiu Aparecida como padroeira do Brasil. Era difícil esbarrar com um brasileiro que não se dissesse católico então —95,2% o eram no Censo de 1940, enquanto evangélicos marcavam 2,6%, e os sem religião, 0,2%.
Naquele começo dos anos 1930, “a Igreja [Católica] voltava a ser vista como aliada importante por aqueles que agora governavam o Brasil”, diz Rodrigo Alvarez no livro “Aparecida”, reeditado pela Record. Houve peregrinação pelo Rio, capital do país à época, da estátua retirada de um rio por pescadores em 1717 —uma imagem “aparecida”, daí a forma como essa Nossa Senhora ganhou sem nome.
Para padres da época, a multidão nas ruas encarnava “a maior demonstração de fé desde o descobrimento, não só do Brasil, mas da América do Sul”.
Alvarez lembra um capítulo curioso da interação entre o líder agnóstico e a escultura sacra: “Quando ficou diante da santinha, embora tivesse pedido para ter aquela oportunidade que certamente lhe renderia um bom momento com os fotógrafos, Getúlio não soube o que fazer. Não era religioso. E acabou segurando a barra do manto azul, sem que ninguém entendesse por quê. Então, um bispo o salvou ao dizer: ‘Senhor presidente, é para beijar!’ E o senhor presidente beijou os pés da padroeira”.
A estátua original sofreu um atentado em 1978. Um jovem com transtornos mentais saltou de uma altura de mais de dois metros até a redoma que a protegia, removeu-a de lá, e ela se espatifou. “O barro esculpido mais de 300 anos antes tinha virado um amontoado de pedaços e farelos sagrados espalhados pelo chão da igreja feita especialmente para abrigá -lo”, diz Alvarez.
O ícone foi restaurado, mas sua força popular apresenta rachaduras, assim como a de líderes religiosos que zelam pelo Santuário Nacional de Aparecida. Em 2021, o deputado bolsonarista Frederico d’Avila (PL) chamou o arcebispo local, dom Orlando Brandes, e também o papa Francisco, de “pedófilos”, “vagabundos” e “safados”.
Reagia a uma fala de dom Orlando no 12 de outubro daquele ano. Declarou o religioso, antes de visita do então presidente Jair Bolsonaro à Aparecida: “Vamos abraçar os nossos pobres e também nossas autoridades para que juntos construamos um Brasil pátria amada. E para ser pátria amada não pode ser pátria armada”. No eleitoral 2022, também antes da chegada de Bolsonaro, o arcebispo disse ser preciso “vencer os dragões do ódio e da mentira”, o que admiradores do presidente entenderam como indireta.
Lula (PT), o atual mandatário, recuperando-se de cirurgias, não deve à Aparecida no feriado. O Palácio do Planalto ainda não informou se ele será representado por outro integrante do governo.